segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O universo criativo de Marcos Flávio

“Após a meia noite, todos os super-heróis e super-humanos saem à procura daqueles que sabem mais do que si próprios”. (Bob Dylan)

Marcos Flávio nunca foi um lugar comum. Foi um universo paralelo. Um mundo de questionamentos, criatividade e humor, ainda pouco desvendado. Ao seu redor, gravitavam dezenas de amigos, sedentos por seus devaneios poéticos, produzidos aos milhares nas mesas de bar. Entre os anos 60 e 70, tudo era muito inacessível. Raros eram aqueles que dispunham de uma grande variedade de discos, livros e ideias.
O santarritense Marcos Flávio.
 Dono de uma rica coleção de álbuns, colecionador das mais cultuadas obras poéticas e aglutinador nato da juventude intelectualizada dos anos 60 e 70, Marcos fazia questão de receber dezenas de amigos no grande porão de sua residência, onde realizava saraus que atravessavam a gélida noite santarritense. De estudantes, amigos e artistas, a personagens lendários como Pantera e Maria Vitrola, o repertório de informações que circulavam em suas noitadas era incrível. Logo na entrada do porão, a advertência talhada com fúria em uma placa de madeira: “Circo mágico, teatro do absurdo. Passagem só para loucos, entrada só para raros”. A citação de Herman Hesse, autor do clássico “O Lobo da Estepe”, dava o tom do que esperava o visitante ao adentrar aquele território inusitado. Abençoado por música da boa, rodeado pelos mais incríveis escritores do planeta e disperso em um ambiente incomum, o grupo trocava ideias, discutia cinema, debatia assuntos filosóficos e declamava poesias de artistas que, como eles, faziam questão de estar vivos.

“Oh burocratas, que ódio vos tenho! E se fosse apenas ódio... é ainda o sentimento da vida que perdi sendo um dos vossos.” (Carlos Drummond de Andrade)


Ao romper do dia, Marcos Flávio vestia o seu disfarce de burocrata. Tornava-se o distinto escrivão do cartório de registro civil. Enredado naquele ciclo diário de casamentos, óbitos e cerimônias batismais, o jovem libertário quase podia ser confundido com qualquer simples mortal. Consciente do peso que seu cargo impunha, o funcionário público variava do formal ao genial com uma habilidade impressionante. Entre clientes, colegas de trabalho, artistas e amigos para a vida toda, Marcos travava um luta incessante para conter sua angústia. Afinal, como uma pessoa tão querida poderia se sentir, ao mesmo tempo, tão sozinha? Nem ele entendia. Para desvendar esse enigma, interagia incessantemente com o mundo e trazia suas verdades para o papel. Marcos escrevia tudo o que pensava. Tingia guardanapos, panfletos, rótulos e cadernos com divagações sentimentais. Questionava o automatismo, a existência, a obviedade, o amor. Buscava em cada nova amizade des-vendar um pouco de si mesmo. Quanto mais se esforçava para compreender o mundo, mais produzia textos e divagações em busca de respostas complexas.
A casa onde viveu Marcos Flávio.
No início de 70, Marcos fundou o  “Bloco BandaLheira”. Anos depois, idealizou o lendário “Vai quem Ké”: considerado, por eles mesmos, o bloco caricato mais democrático que o planeta já viu. Nessa mesma época, criou o Grupo de Teatro Amador de Santa Rita do Sapucaí. Além de diretor, roteirista e ator, Marcos ainda era cenógrafo e figurinista das obras encenadas. A turma de amigos fazia sucesso. Em cinco anos, a trupe colheu aplausos em toda a região e, ainda hoje, é lembrada com saudosismo por muitos fãs.

Em 1981, Marcos participou da criação de um de seus mais conhecidos projetos artísticos: o tradicional Feirão Folclórico. Como haviam planejado, a primeira edição do evento cumpriu o objetivo fundamental: tirar a população santarritense da inércia intelectual. Em aproximadamente dez dias, o Feirão espalhou obras de diversos artistas pelo centro da cidade, trouxe apresentações musicais dos mais variados gêneros e realizou intervenções que chocaram os mais ortodoxos. A mais polêmica delas foi o enxerto de um turbante de Carmem Miranda na estátua do Chico Moreira. Aquela cena gerou grande repercussão na cidade, mas proporcionou exatamente o que eles queriam: apresentar o novo através da destruição de paradigmas. Nesse mesmo ano, surgia uma nova empreitada: a criação do Desfile de Cavaleiros. Depois desse bombardeio intempestivo de novas tendências, Santa Rita jamais seria a mesma.

Alguns conheceram o Flávio libertário, tantos outros o escrivão. O que muitos não sabem é que suas obras em benefício dos menos favorecidos se espalharam por toda a cidade. Mesmo sem ter estudado arquitetura, Marcos Flávio projetou diversas casas, sem nunca ter cobrado um único centavo por isso. Durante toda a sua vida, patrocinou estudos, tratamentos odontológicos, atendimentos médicos e distribuiu cestas básicas para diversas famílias carentes. No entanto, nunca passou por sua cabeça lucrar com suas obras. O sonho de Marcos era transformar o mundo e não tirar proveito dele.
O grupo de teatro santarritense liderado por Marcos Flávio: muito sucesso na região.
Robson, um de seus grandes amigos, conta que Marcos vivia dizendo que não chegaria aos 60 anos. Quase ninguém sabia, mas o escrivão convivia, há algum tempo, com um câncer, talvez gerado por sua incapacidade de exteriorizar todas as angústias e sentimentos. Apesar da enfermidade, Marcos continuou levando a vida com grande humor até perder o grande amor de sua vida: sua mãe, Helena. Eliana Miranda, outra de suas grandes companheiras, conta que o abatimento que o acometeu após a perda, só fez despertar aquele sofrimento que, até então, permanecia latente. Como profetizara, Marcos Flávio faleceu em 1998, pouco antes de completar 60 anos. Consternada com a perda irreparável do ente querido, sua família guarda até hoje as mensagens de adeus dos amigos mais íntimos:

“Marcos é IMORTAL. Ele foi e sempre será uma ESTRELA-GUIA, cheia de luz que iluminou o caminho de muitas pessoas com sua compreensão, bondade, amor e amizade verdadeira.”

“Santa Rita está perdendo a figura mais inteligente, criativa, agradável e amiga, que sempre nos deu o prazer de parar e conversar.”

“Foi um companheiro polêmico, irreverente, brilhante e culto. Um professor e poeta que ia com facilidade de Camões a Henfil.”

“No coração de todos nós ficará o amigo, irmão e anjo da guarda.”
 
A seguir, uma de suas cartas a uma amiga:

Ficou menina mais tempo que o devido. Posou de ingênua sem acreditar no que teimava em não sentir. Foi preciso executar cadáveres (de vivos e de mortos) e viajar mundos inteiros para aprender a acordar. E então um tempo novo inaugurou. E os vivos viram que ela era mais viva que os fantasmas de antes. Foi então que eu vi que a menina, que um dia conheci menina, estava pronta para assumir a vida. Estava alerta para viver adulta.

(Esta matéria teve a colaboração dos grandes amigos de Marcos Flávio: Eliana Miranda, Robson Cruz, Wilma Machado S. Mello e Alicinha Baracat. Alguns dados biográficos foram retirados de um trabalho feito por Carla Kristina Nass de Andrade em agosto de 1999. )

(Carlos Romero Carneiro)

2 comentários:

  1. Me chamao Monica. Eu nasci em santa rita do sapucai e o meu registro de nascimento foi dado de presente pelo proprio marcos flavio e dias. Segundo o que minha mae sempre me contou, e' que foi uma epoca muito feliz da sua vida. A Helena, mae de Marcos foi a testemunha na certidao de nascimento. Minha mae sempre fala da Maria Vitrola. Nossa nao conheci o Marcos, porque fui cedo pra cidade do rio de janeiro. Agora gostaria de saber pra onde foi o cartorio em que ele era o escrivao ? Ainda existe ? Estou precisando de uma segunda via da minha certidao e nao sei como faco. Fiquei triste em saber que o Marcos fez parte da minha infancia e eu nao o conheci e mais em saber que ele morreu. Falei com minha mae, ela ficou muito triste.

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  2. Tive a feliciade de ser aluno, depois amigo e compartilhar o convìvio com o Marcos Flávio e com dona Helena. Convivi com ele como professor, o formal escrivão e o incasável oontestador e crítico do tradicionalismo. Ao ver a foto do saudoso Marcos Flávio e da casa onde frequentei, veio uma imensa saudade dos bons tempos vividos em Santa Rita do Sapucaí. Saudade gostosa, que só as boas lembranças são capazes de trazer.

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