terça-feira, 31 de maio de 2011

Entrevista com o sábio Gumercindo Rodrigues

Gumercindo Rodrigues é uma espécie de referência aos historiadores locais. Aos 88 anos, com uma memória invejável, o sapateiro que trabalhou a vida toda em sua oficina na rua da ponte conhece histórias do arco da velha. Nesta edição do Empório procuramos conhecer este homem tão sábio e lúcido e o resultado você confere a seguir:
Como era a Santa Rita do Sapucaí de sua infância?

Eu tenho oitenta e oito anos. Na minha infância, a cidade era muito pequena. Só existiam a Rua do Queima, a Rua da Ponte, a Praça, a Rua do Zé da Silva, a Rua Nova, a Rua Erasmo Cabral e a Rua dos Marques. Nessa várzea onde está o hospital era um aterro. Lá só tinha um campo de futebol e sempre ficavam ali os circos que chegavam à cidade. No lugar onde está a casa da Dona Mariquinha Barbosa - perto do Pronto-Atendimento - existia um córrego. Ouvi dizer que nos fundos da casa do Acácio Vilela também tinha uma lagoa e que chegou a morrer um estudante filho de judeu ali.  Essa terra era muito pacata. Morte não existia. Briguinha de pinga sempre tinha, mas em cinquenta anos eu só soube de uma única morte.

O senhor começou a trabalhar muito cedo?

Eu comecei foi na oficina do Marra. Depois eu trabalhei para o Didico, filho do Antônio Turco. Daí eu fui embora com a minha família para Cachoeira e só voltei já moço para trabalhar na rua da ponte como sapateiro.

Onde ficava seu estabelecimento?

Minha loja era onde hoje está o Banco Bradesco. Eu tinha uma porta ao lado dos Abdalinhas, em uma garagem. Ali eu entrei mocinho e saí velho. Comecei com vinte e dois anos e saí com quase setenta. Fiquei trinta e sete anos em um lugar só. O proprietário do espaço era o senhor Rodolfo Adami, grande pioneiro de Santa Rita.

Conte-nos sobre o senhor Adami.

Rodolfo era pai do Ico Adami. Pouco antes de vir para cá, ele trabalhou na construção das estradas de ferro de Diamantina e Ouro Preto. Nessa ocasião, durante a inauguração da estrada de ferro, ele disse que conversou com Dom Pedro e que viu uma rainha da família Savoya da Itália. Sua chegada por aqui aconteceu porque o próximo serviço seria em Passo Quatro e ele errou o caminho. Somente quando chegou a Bela Vista foi que disseram para ele que a cidade não era essa.

Ele ajudou a construir nossa ferrovia?

Quando Rodolfo chegou a Santa Rita, a ferrovia já havia sido traçada. Ele estava descansando em um rancho de peões que existia na atual rua da ponte - em frente à casa do Jaques Bresller - quando foi visto por um engenheiro que, ao reparar nas suas corroças, perguntou se ele trabalhava com construção. “Onde tiver trabalho eu fico!” – respondeu o italiano. Com suas carroças, ele aterrou um trecho da ferrovia e acabou se casando por aqui. Desde então, a primeira fábrica de macarrão e a primeira padaria foram dele, foi ele quem aterrou a rua da ponte e também comprou uma máquina de café na rua do queima. Rodolfo foi um dos pioneiros de Santa Rita.

Como era a sua oficina?

Meu boteco (oficina) era uma vergonha! Tinha de tudo que você pode pensar! Moço, moça, velho, velha! Gente de tudo que é tipo! (Risos) O falecido Celso era um grande companheiro que frequentava lá. Aliás, aquela família inteira é minha amiga!  Como andante era o que mais tinha na cidade, o Waltinho do Bruno ficava na porta mexendo com todos eles. Ele, quando moleque, era uma praga! O pé de anjo (personagem folclórico da época) era divertido, mas falava cada palavrão pra nós, rapaz...

Quem frequentava o local?

Ali eu convivi com muita gente. Com pedidores de esmolas, prostitutas, princesas e sábios. Um deles, o Leopoldo Memberg - neto de um general da Baviera - era um verdadeiro gênio e nunca ostentou um só título em toda a sua vida. Era irmão do doutor Frederico de Paula Cunha e tinha uma cultura de fazer inveja. Tudo o que você perguntava o danado entendia. Foi com ele que ouvi falar pela primeira vez do Titanic. Ele também me contou muitas histórias sobre sua visita ao Padre Vítor.

O que ele te contou?

Padre Vitor recebia presentes todo dia, mas tudo que ganhava aqui, dava ali. Deitava no chão porque não tinha onde dormir. Era uma das únicas pessoas do mundo que faziam desdobramento (viagem espiritual). Leopoldo conta que, certa vez, dois padres amigos dele foram para Roma comprar seu título de “pároco” e quando chegaram lá, descobriram que ele já tinha passado antes, pegado os documentos e voltado pra casa.

Quem foram os seus amigos na juventude?

Eu fui grande amigo de um homem que brigava até com a sombra: Edmundo Síecola. Mas ele era um homem de um coração e de uma bondade que não tinha tamanho. Desde criança éramos amigos. Era uma pessoa honesta, sincera e franca. Convivemos muito tempo juntos.

Também fui muito amigo do Belarmino – um grande humorista do rádio brasileiro. Ele chegava na minha oficina, arrancava o sapato e dizia: “Conserta aí porque eu não tenho dinheiro pra comprar outro!” Era um homem de um coração e uma bondade muito grandes. Quando ele chegava lá na oficina o dia acabava, xará! Ficava o dia inteiro contando histórias.

Conte-nos uma delas.

Ele contou que conheceu o Juscelino Kubitschek em um recreio de faculdade. Como eram pobres, os dois ficavam isolados dos ricos. A sociedade era muito fechada. Depois de formados, eles estiveram na revolução de 1932 e trabalharam como médicos. Eram tão próximos que quando Juscelino foi governador de Minas chamou Belarmino para ser seu Secretário de Saúde.

O lendário Dito Cutuba também frequentava sua Sapataria?


O cutuba foi muito amigo meu e não saía da minha oficina. Sua vida pregressa foi cheia de frustração e revolta, mas era muito querido na cidade. Ele tinha umas amizades muito importantes.

Ele tinha amigos importantes?

Uma vez, quando o Tonéte (Irmão de Bilac Pinto) – que era Procurador do Estado da Guanabara - apareceu por aqui, ficou hospedado na casa do falecido Coronel Chico Moreira e pediu ao João do Carmo que chamasse o Cutuba. O dois eram muito amigos porque estudaram juntos em Brazópolis.

Estava aquele homem importante no portão da casa do Chico Moreira quando chegou o Cutuba – fedido, barbudo, sujo e com um chapéu enorme da cabeça. Tonéte quando o viu falou: “Como você está moço Dito!” E o Cutuba respondeu: “Estou moço porque eu sou vadio! Como você tem responsabilidade, está velho!” (Risos). Os dois almoçaram juntos na mesa do Chico Moreira!

No outro dia, eu estava trabalhando quando Cutuba chegou e se sentou em cima de um monte de pneus que eu tinha em frente ao balcão. O Dito virou pra mim e disse: “Moço, eu to abonado!” E retruquei: “Você está abonado como? Você não trabalha...” Daí ele enfiou a mão no bolso, tirou duas notas novinhas de cinco mil cruzeiros e falou: “O Tonéte me deu!” (Risos) Era muito dinheiro! Eram umas notas bonitas de dar gosto!

Qual a diferença entre a cidade de sua juventude e a de hoje?

O que eu vejo é que hoje está muito bom para o operário. Antigamente, o povo era muito sofrido. Tinham os barões e tinham os escravos. O camarada tinha muito valor quando trabalhava dia e noite. Quando ficava velho, ou ia para o asilo ou pedia esmola na rua. Do Getúlio pra cá, quando foram criadas as leis trabalhistas foi que a coisa melhorou. Hoje eu não vejo mais ninguém descalço. Não tem mais ninguém rasgado ou sujo. A verdade é que, atualmente, o país está uma maravilha para o operário.

O senhor tem alguma inclinação ao socialismo?

Na verdade, eu nunca li uma única obra socialista, mas a vida toda, sempre que pegava um prato pra comer, me preocupava se o meu semelhante também tinha com que se alimentar. Essa é a minha política.
(Entrevista concedida a Carlos Romero)

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