quinta-feira, 17 de maio de 2012

Conheça a trajetória do "santarritense" Victor Neira

Como foi o início da sua vida?

Eu nasci em plena Segunda Guerra Mundial, no dia 27 de junho de 1943. Minha infância aconteceu durante a crise pós-guerra que afetou o mundo todo. A minha família que era pobre, tornou-se paupérrima. Com sete ou oito anos,  soube o que era passar fome. Já cheguei a ficar uma semana, ou mais, sem ter com que me alimentar a não ser uma água suja. Digo água suja porque tomávamos chá reaproveitado. Minha mãe tirava o chá do coador, colocava-o em um pano e o deixava em cima do telhado para secar e ser reaproveitado. Isso fez de mim um garoto com muito complexo. Durante muitos anos me julgava o mais fraco, o mais burro, o mais feio, o mais pobre. Isso foi até os meus 11 anos quando descobri que tinha um valor: na escola, no bairro ou na minha comunidade, não tinha ninguém que desenhasse como eu. Descobri que era o melhor desenhista do meu grupo e resolvi fazer daquele dom uma forma de ganhar a vida. Comecei então, a trabalhar e me envolver com arte e com artistas.

O senhor passou então a trabalhar como desenhista?

Quando descobri que desenhava, comecei a trabalhar com desenhos. Primeiro entre amigos, depois oferecendo meus serviços para empresas de pessoas que me conheciam. Uma vez fui procurado por uma empresa que fabricava jogos de tabuleiro. Eles fabricavam um jogo chamado “Turismo na América do Sul”, queriam mudar o tabuleiro e perguntaram se eu gostaria de fazer outro melhor. Eu aceitei. Durante muito tempo esse jogo foi vendido com a embalagem e o tabuleiro que eu criei. Depois fui procurado para criar alguns anúncios, fiz alguns trabalhos de ilustração, até que o jornal da Cooperativa de Correios e Telégrafos do Chile me chamou para trabalhar como desenhista. Daí a pouco comecei a enviar desenhos para outros jornais e, aos quinze anos, já tinha alguns desenhos e piadas publicados no jornal “El Clarin”. Desde então eu desenhei para muitos jornais, revistas e editoras, até conseguir, aos 18 anos, ser o mais jovem ilustrador a publicar uma charge no editorial do jornal “La Nacion”, que era um dos maiores jornais do Chile.

Desde cedo o senhor se interessou por política?

Eu venho de uma tradicional família de comunistas e sou  a ovelha negra dessa família porque nunca pertenci a partido político nenhum. Independente dos partidos, sou um homem de esquerda, porque preconiza uma melhor distribuição de renda. Apesar de muito pobres, meus familiares era muito ricos culturalmente. Minha avó, dona Heloisa Tortosa Somedevilla era filha do conde de Tortosa da Espanha e de um nobre italiano. Por motivos políticos, foram obrigados a fugir da Europa com a roupa do corpo. Éramos pobres, morávamos em um casebre, mas éramos culturalmente ricos.

O senhor foi perseguido pela ditadura chilena?
No dia 11 de setembro de 1973 o dia amanheceu como amanhecem todos os dias. O galo cantou, a gente acordou, as mães levavam os filhos para a escola, algumas pessoas iam à padaria e eu saí para trabalhar. Parecia um dia normal, até o momento em que começaram a surgir boatos de que haveria um golpe político. Alguns dias antes, houve uma grande passeata e nós pensamos, ingenuamente, que aquela maciça mobilização popular abafaria o golpe. Só que nem os militares chilenos, nem a CIA e nem o governo americano estavam preocupados com o povo chileno. O que eles não queriam era que chegasse  a bom termo um governo de esquerda eleito pelo povo sem derramamento de sangue. Se a moda pegasse, eles  perderiam a influência na América Latina. Desde então, os americanos começaram a apoiar ditadores em todos os países sul-americanos.

Uma semana depois do golpe, os militares chegaram à empresa em que eu trabalhava com uma lista de nomes, e o meu entre eles. Com as pernas tremendo me identifiquei. Dois militares colocaram suas baionetas nas minhas costas e me retiraram do trabalho. O que mais me impressionou na época foi ver que todas as mulheres que trabalhavam comigo choraram por mim.

Fui encaminhado ao Estádio Nacional que serviu como campo de concentração. O mesmo estádio em que o Brasil conquistou a Copa do Mundo de 1962. Fomos catalogados “prisioneiros de guerra” naquele acontecimento absurdo em que os militares passaram a violentar o próprio povo que pagava o salário deles, usando as armas que o próprio povo havia comprado para eles protegerem o país. Tudo porque queríamos um Chile mais livre.

Como era a rotina no Campo de concentração?

De noite ficávamos no vestiário. Eram mais de 160 pessoas em um lugar feito para que dois times trocassem de roupa no intervalo de um jogo. Alguns dormiam deitados, outros em pé. Os que dormiam debaixo do chuveiro acordavam com a roupa encharcada. Ao amanhecer, éramos levados às arquibancadas e obrigados a ficar no ócio, tomando sol o dia inteiro.

Nessa época foi que o senhor passou a acreditar em Deus?

No meio de todo esse sofrimento, certo dia, eles nos tiraram do estádio e nos levaram ao velódromo que ficava ao lado. Lá, nos colocaram de frente para um muro, em pé, com as mãos na nuca, as pernas abertas, em uma posição que não podíamos nos mexer senão apanhávamos. Ficamos horas em absoluta imobilidade. Ouvíamos barulhos de corpos caindo e não sabíamos se aquelas pessoas voltariam ou não. Em um determinado momento eu olhei para aquele muro, que refletia um calor terrível, e notei que existia uma folhinha verde. Como era a única coisa diferente, me concentrei nela e de pronto me surpreendi conversando com ela,  perguntando-lhe mentalmente como era possível tanto abuso e porque estávamos passando por tudo aquilo. Quando voltei à realidade, fiquei me perguntando como era possível que eu, que não acreditava em nada, estivesse me dirigindo a uma folha insignificante como se fosse uma divindade. Será que eu não acreditava mesmo ou apenas acreditava que não acreditava? Quando fui libertado, duas semanas depois, escutei pelo rádio uma música de um amigo. A canção, que eu não conhecia, chamava-se “Entalhando” e contava a história de um caboclo que, em um momento de ócio, pegou um pedaço de madeira e com seu canivete começou a entalhar. De pronto, se surpreendeu ao perceber que estava entalhado uma cruz e pensou: “Eu nunca acreditei em Cristo, mas quanta falta Ele fazia!” Ao ouvir essa frase chorei que nem criança. Depois juntei os dois acontecimentos, o da folha e o da música e tive uma certeza: eu acreditava em algo e comecei a chamá-lo de Ente Cósmico, Força Superior... Passado algum tempo, descobri que o melhor nome para o que eu acreditava era Deus.

Como foi sua saída do Chile?

Enquanto estive preso, fui torturado pelos militares. O momento da tortura foi mais ou menos assim: Com a vista vendada e as mãos amarradas nas costas, me fizeram ajoelhar. Faziam uma série de perguntas que só podiam ser respondidas com monossílabas - sim ou não – as perguntas aumentavam em velocidade e a gente embalava no “sim”, e vinha uma pergunta que deveria ser respondida com “não.” E respondi que sim à perguntarem se eu era a favor de matar não sei quantos militares. Os militares começaram a me bater, pisar nos calcanhares com os pesados coturnos, chutar a barriga, pisar nas coxas e chutar os joelhos...

Em 3 ou 4 semanas, a dor física passou. Já a dor psicológica durou anos. A pressão militar era intensa. Toda semana, os militares voltavam à empresa e levavam mais alguém preso, sempre alguns que já tinham sido detidos. Isso me dava uma profunda insegurança que estava me fazendo mal. Nessa época, eu estava pesando 41 quilos, tinha terríveis dores de cabeça, passava o dia com vontade de vomitar. O médico da empresa me disse: “ou você aprende a conviver com essa situação ou sai do Chile”. Foi o que fiz em janeiro de 1975. Saí do Chile legalmente, com passaporte. Antes disso, tirei alguns documentos que comprovavam que tinha sido preso político. Em 27 de janeiro de 1975, entrei ao Brasil com um visto de turista.

Por que o senhor escolheu o Brasil?

Eu não escolhi o Brasil, foi o Brasil quem me escolheu. Isso demonstra que o Brasil tem bom gosto! (Risos) Antes de chegar aqui eu estive no Paraguai. Lá, eu tinha um amigo que me informou que a Polícia Secreta estava me investigando. Da noite para o dia, eu arrumei minhas malas e vim para o Brasil.

Como foi o seu recomeço no Brasil?

O primeiro ano de Brasil foi muito difícil. Não conseguia trabalho por não ter documentos e não arrumava documentos por não ter “promessa de emprego”. O dinheiro que havíamos conseguido vendendo as coisas que tínhamos no Chile foi acabando e tínhamos que batalhar. Trabalhamos em uma fábrica da máfia Coreana que fazia capinhas para calculadora. Era um regime de quase escravidão. Tínhamos que manter a máquina trabalhando 24 horas por dia. Quando eu parava para descansar, entrava minha mulher ou meu irmão no lugar. Depois, começamos a limpar o banheiro de um restaurante anexo a uma rodoviária de São Paulo. A limpeza só acontecia uma vez por semana e, quando fomos começar, o lugar não era limpo há muito tempo. Quando minha mulher viu, passou mal. Eu tive que pegar uma bucha e esfregar aquele banheiro inteiro. Continuamos naquela vida até conseguir a documentação. Com ela, consegui trabalho e a vida começou a melhorar.

E Santa Rita? Como o senhor conheceu a cidade?

Não fui eu que fiquei sabendo de Santa Rita, foi Santa Rita que ficou sabendo de mim! (Risos) Na época, eu trabalhava no grupo Atalla e lá também trabalhava o santarritense João Luiz Vilela. Por acaso ele viu meu currículo e lhe chamou atenção que eu tinha estudado na Universidade Católica de Santiago. Ele lembrou que um dos seus amigos havia estudado lá. Era o Padre Ramon, na época, diretor da FAI. Então o Pe.Ramon me convidou para conhecer a cidade e eu comecei a vir todo final de semana, até ser convidado para trabalhar na faculdade. Isso fui em agosto de 1978.

 O que o senhor pensa sobre Santa Rita?


Como toda cidade, Santa Rita tem suas qualidades e tem seus defeitos, mas eu posso dizer que aqui eu fiz os meus melhores amigos. Os dois amigos que mais admiro são os santarritenses Tito de Oliveira Dias e Cleber Miranda. Eu não falo isso pra eles, mas são pessoas que eu gosto muito.
 
Oferecimento:

Nenhum comentário:

Postar um comentário